Como a tristeza de perder o amor de uma vida inteira e ter de lidar com a solidão ou, mais precisamente, como de repente ser obrigado a encarar os maiores e mais íntimos medos. O continuar a caminhar mesmo sabendo que não importa quantos atalhos sejam tomados, quanto tempo se passe, o ponto de chegada - ou partida -, de todos, sempre será o mesmo.
A máquina de fazer espanhóis conta a história de António Jorge da
Silva, um homem de 84 anos que perdeu a mulher, companheira com quem dividiu quase 50
anos de vida, e foi mandado pelos filhos para um asilo. Nesta casa de repouso –
o lar da feliz idade – os recém-chegados são acomodados nos quartos com vista
para os jardins, para as crianças, para a vida. Até que o próprio corpo deixe
de obedecer a mente, e se mostrar surdo as vontades do cérebro, pois é quando o
morador é transferido para os quartos de trás com vista para o cemitério, para
a morte cada vez mais próxima, para a certeza do que não se pode evitar. É nesse lugar que o nosso Silva
conhece outros tantos como ele. Outros Silvas assim como ele. Conhece também
ninguém menos do que o Esteves sem metafísica, aquele mesmo da Tabacaria, do
poema de Fernando Pessoa. E é nesse lugar que o Silva passa a discorrer sobre
os elementos inerentes a vida, e sobre muito mais.
A máquina de fazer espanhóis é também um livro que versa bastante sobre política. Política essa tratada não de maneira sutil, porém, achei muito inteligente a forma como Valter Hugo Mãe trouxe o tema à tona, sob a forma de lembranças dos velhos do feliz idade.
A narrativa de Valter Hugo Mãe é
algo à parte. Não só pelo uso de minúsculas durante quase todo o livro, excetuando
apenas dois capítulos, mas sim pela oralidade única que ele construiu. Uma voz para ser
conhecida, reconhecida e incapaz de ser confundida. Assim é a voz de Valter
Hugo Mãe. Uma voz que passeia pelo real e o imaginário com a mesma facilidade,
sem distinção.
A máquina de fazer espanhóis é um livro fantástico em todos os sentidos. Elogiado por ninguém menos que o José Saramago, Valter Hugo Mãe escreveu um daqueles livros que ganham facilmente, e apropriadamente, o título de imperdível. Eu, cá por mim, não vejo a hora de poder ler tanto mais quanto puder desse português incrível que só descobri recentemente, e recomendo-o a todos que, assim como eu, não conheciam esse grande talento da literatura contemporânea.
“com a morte, também o amor devia acabar. acto contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder. foi como se me dissessem, senhor silva, vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante.” (p. 21)
Eu comprei esse naquela promoção do mês passado, dei uma folheada e me assustei ao ver tudo em minúsculas (já sabia, mas vendo a sensação é outra), assim como eu me assustei ao ver a ausência de pontuação nos fluxos de consciência de O Som e a Fúria, do Faulkner. Decidi deixar pra depois na minha lista, mas lendo essa resenha eu decidi jogá-lo pra frente de novo.
ResponderExcluirAh que vontade de ler! Acabei de ler O filho de mil homens e fiquei encantada com a escrita do Valter Hugo Mãe. Ficou fantástica a resenha :)
ResponderExcluirBeijo!
Infelizmente nao li nada o Valter, mas sempre vejo ótimos comentários a respeito do trabalho dele. Tá na hora de eu começar a ler, nao é mesmo? Também estou participando do desafio: http://organizando-o-caos.blogspot.ca/2013/09/desafio-literario-as-intermitencias-da.html
ResponderExcluirAbraço
Elogios não faltam quando ouço falarem sobre o autor, confesso que tenho muita vontade de ler A Máquina de Fazer Espanhóis, mas infelizmente ainda não consegui trazê-lo a minha estante. Sua resenha me fez querer ainda mais!
ResponderExcluirAdorei!
ResponderExcluirMas será que é uma mania de português escrever só com minúsculas? Taci, adoro visitar seu blog que sempre encontro coisas super diferentes, fico me imaginando de onde você tira tanto livro diferente da blogosfera (YA-Chick Lit)
Beijinhos!