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"Coloco-me nas suas mãos. Faz de mim o que lhe aprouver."

11/03/2013

Histórias com animais protagonistas. Um tema que eu poderia, facilmente, discorrer sobre, sendo eu uma aspirante a médica veterinária. Mas eu disse poderia, certo? Poderia se fosse qualquer outro livro que não Caninos Brancos. A maioria dos autores que usam animais como personagens principais ao escrever suas histórias, o fazem puramente como analogias ao comportamento humano. Tratam de sistemas econômicos, humanizam e alguns até satirizam os tais animais. Com Caninos Brancos, a história é, completamente, diferente. Jack London nos mostra a perspectiva do lobo, sem usar de maquiagens e, o mais importante, sem usar de romantismos afetados para descrever a natureza selvagem.


"(...) o lince à espera e o porco-espinho também, ambos atentos à sua própria existência. E o curioso daquele jogo era que a vida para o primeiro consistia em comer o segundo, ao passo que, para este, consistia em não ser comido. E o velho Zarolho, agachado no seu esconderijo, tomava igualmente parte no jogo, esperando um capricho da sorte que o ajudasse a conseguir a carne, que para ele significava também a vida." (pág. 51)

E como autor realista que é, Jack London não poderia deixar de mostrar, dentre todos, qual a fera mais selvagem e perigosa existente na natureza. Animal esse que não exita em demonstrar sua superioridade sempre subjugando os outros. E que animal seria esse se não o homem?
"(...) Os homens eram deuses indiscutíveis, a cujo poder não podia escapar. Tal como a mãe, Kiche, que se lhes rendera mal os ouvira chamá-la pelo nome, assim ele começava a submeter-se. Reconhecia-lhes o direito à iniciativa como privilégio indubitável. Quando avançavam na sua direção, o lobinho afastava-se-lhes do caminho. Quando o chamavam, aproximava-se logo. À mínima ameaça, agachava-se. Se o mandassem embora, afastava-se apressadamente. É que, por detrás de cada desejo do homem, existia sempre o poder que vinha reforçá-lo, um poder que sabia magoar e cujos meios de expressão eram pancadas, pedradas e vergastadas dolorosas." (pág. 82)

O livro é permeado da submissão, da obediência cega e do medo de Caninos Brancos pelo "deus" que é o seu dono. Mesmo sendo maltratado, constantemente surrado e mais, frequentemente, ignorado, ainda assim, ele foi capaz de correr por dias seguidos só para seguir seu dono. Perdido o costume da caçada, amolecido pelo cotidiano doméstico, sobreviver como um cachorrinho foi o que restou da antiga dignidade lupina. Foi lendo as passagens que denotam a extrema solidão de Caninos Brancos, ao ter se deixado ficar para trás quando seu dono resolveu mudar acampamento (e se arrependido por isso, à sua maneira de percepção  animal), eu lembrei de um quote, em especial, de As Crônicas de Gelo e Fogo: "Quando as neves caem e os ventos brancos sopram, o lobo solitário morre, mas a alcateia sobrevive." Mas Caninos Brancos não tem alcateia alguma. Tem apenas um dono rude e indiferente, e na mente tão abstrata de um lobo que foi privado de viver em liberdade desde cedo, essa é sua ideia de companhia; essa era a sua alcateia. 


"(...) Caninos Brancos servia por dever e medo, mas não por amor. Não sabia o que isso era. Nunca o conhecera. Kiche era uma recordação longínqua. Além disso, não só ele renunciara à selva e à sua própria espécie, quando se entregara ao homem, como os termos do pacto eram tais que, se algum dia tornasse a encontrar Kiche, não deixaria o seu deus para segui-la. A sua submissão ao homem parecia superar tudo o mais: o amor à liberdade, à espécie, à família." (pág. 103)

O tempo passa, a história continua, até que a sorte de Caninos Brancos piora de vez. Foi vendido a outro "deus", um louco e ainda mais cruel que o anterior, que o punha a lutar até a morte contra outros lobos e cães. Mais selvagemente maltratado a cada dia, ficou, frequentemente, às portas da morte por culpa da malignidade de um homem covarde e cruel. Chegava até a aproveitar os momentos de luta por serem os únicos momentos em que não se via preso, e podia dar vasão a todo o ódio que tinha dentro de si. Ódio esse que constituía seu único alimento desde que, filhote, era com ele que o tratavam.

Mas, a despeito de tanto sofrimento, um dia a sorte veio. E veio acompanhada de amor. O lobo, que durante a vida inteira só recebeu maus tratos, ódio e sofrimento, de repente, se viu sendo amado e, pouco a pouco, amando também. Um amor cego, um amor devoto. Um amor do tipo que só um animal é capaz de demonstrar. E ele, enfim, alcançou a felicidade, uma merecida felicidade. "Caninos Brancos", mais do que qualquer coisa, mostrou que tudo que qualquer criatura da natureza, seja animal ou homem, mais precisa, é o amor. Simplesmente. Sem reservas, sem esperar nada em troca, apenas o amor. E é só isso que nós deixamos no mundo: Nada de material; apenas o sentimento de querer bem, perpetuado para sempre. 

4 comentários:

  1. Olá!
    Li esse livro há muitos anos, mas lembro da tristeza e da revolta que senti vendo o lobo ser maltratado por seus "donos". Em sua resenha, você apresentou um ponto muito importante e que torna "Caninos Brancos" diferente das várias histórias envolvendo animais: ele é um lobo e age como tal, suas ações não são "humanizadas" nem usadas como metáforas (não que eu não ache válido usar esses outros recursos). É uma escrita direta, que prende o leitor.
    Enfim... foi ótimo encontrar a resenha deste livro por aqui.
    bjo

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    1. É realmente um livro que nos deixa muito tristes e, mesmo sendo uma ficção, me deixou com uma sensação de impotência muito grande porque, para mim, a imagem do Caninos Brancos representou todos os animais que já foram e são maltratados.

      Sobre o uso desses recursos, eu acredito que se é o próprio animal que está "narrando" a sua vida, que mostra as coisas sob a sua perspectiva, é inverossímil que ele se "humanize" e se utilize de metáforas para tratar de si mesmo, embora não tenha problemas com livros que contem suas histórias dessa maneira, "Caninos Brancos" me cativou ainda mais por ter sido diferente dos demais graças a essa característica.

      Espero que tenha gostado. Beijo :)

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  2. O seu texto foi suficiente para me fazer sentir toda a tristeza desse livro! Sério, deu um alívio saber que o Caninos Brancos vai conseguir alguma felicidade; vou ler esse livro em breve, mas é melhor eu me preparar um pouco :P parece ser BEM mais pesado do que O Chamado Selvagem. E esse detalhe do Jack de usar os animais simplesmente como animais é excelente; por mais que seja ficção, é preciso ver as coisas sem óculos cor-de-rosa de vez em quando.

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    1. Eu tive que falar do final feliz porque eu tava entalada com tanta coisa ruim que tinha acontecido! Li totalmente às escuras, sem saber do que me esperava e só tomei soco no estômago, mas, mesmo assim, é um livro lindo mesmo em sua tristeza. :(

      Esse detalhe torna tudo diferente, pelo menos para mim, e conseguiu melhorar o que já era muito bom. Enfim, é sensacional demais.

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